CRÔNICA – MAGIA DO MÊS DE JUNHO – Por Elvemir Nunes Franco

                                                                                                           

 

  Elvemir Nunes Franco

                                                                                                                                          Cadeira nº 08

                                                                                                                                           Patrono: Padre João Mohana

MAGIA DO MÊS DE JUNHO

Havia algo mágico no mês de junho na década de 1970, na minha cidade. O vento soprava mais frio, o cheiro da pólvora se espalhava pelo ar, vindo dos chuveirinhos, das luzes elétricas, das bombas e estrelinhas, fogos de artifício que iluminavam e encantavam as brincadeiras das crianças nas portas das casas. Era tudo muito fascinante, e funcionava como uma preparação para a maior de todas as nossas manifestações culturais, a “Boiada”, como costumeiramente chamávamos em Viana.

A “Boiada” brincava a noite inteira pelas portas das casas e no Arraial, até o raiar do Sol. Acordávamos ao som dos tambores, em sua grande maioria, feitos de madeira e cobertos de couro de cobra, que se ouvia ao longe e pouco a pouco se tornava mais evidente. Esse era o convite para levantarmos e abrirmos portas ou janelas para apreciar o bailado do Boi, com seu chavelho enfeitado de papel de seda e fitas de cetim, lombo de veludo, bordado de miçangas e canutilhos, que refletiam os primeiros raios do Sol nascente. A barra branca se misturava com a lama dos terreiros por onde havia passado durante a noite. Uma Burrinha branca, montada por um vaqueiro sempre acompanhava o Boi. Os Caboclos de Penas (ou Rajados) tocavam matracas e num perfeito improviso “botavam” toadas, com rimas e versos simples que eram repetidas por todos os brincantes. Os Vaqueiros circulavam o Boi, num bailado frenético impedindo-o que saísse da roda. Apesar de hipnotizados com a sincronia da dança, uma personagem assustadora assombrava as crianças naquele espetáculo. Era o Cazumba, que com um largo vestido de chita, chamado de farda, um cofo amarrado na cintura cheio de tampinhas de ferro ou cacos de vidros, causavam nelas, arrepios, a cada rebolar dos seus quadris. Sua careta, ou queixada, geralmente tinha o formato de um animal, como: cachorro, cavalo, ou porco. Em suas mãos trazia um chocalho e um relho feito de macarrão de cadeira, e um pedaço de pau, com o qual espantava os cachorros que o atacavam na noite. Apesar da aparência horrenda, era uma criatura totalmente irreverente que saía pelas ruas tocando seu chocalho, gemendo e assustando as pessoas. Batia nas casas, pedindo pão, ovo, galinha, e tudo mais que visse pela frente. Ele também protegia o Boi, ajudando-o a fugir e escondendo-o para que os Vaqueiros não o matassem no último dia do mês.

A morte do boi era um importante e extenso capítulo que encerrava a temporada da brincadeira. Brincadeira é um termo aqui usado no sentido figurado, pois o Boi de Promessa para São João, o Santo padroeiro dessa manifestação folclórica, era coisa levada à sério. Mas, voltando para a morte do Boi, na madrugada do dia 30 de junho, o Boi fugia com ajuda dos Cazumbas e se escondia em alguma casa. Mandava a tradição que a família que o escondeu, tinha a obrigação de enfeitar novamente o chavelho do Boi com papel de seda. Ao perceber que o Boi havia fugido, os Vaqueiros saíam de casa em casa à procura de informações, que os levassem ao novilho fugitivo. As crianças participavam da busca representando os cachorros. Ao ser encontrado, o Boi era levado para a Praça da Matriz, ou para a Praça de São Benedito, onde acontecia a laçada. Depois de laçado percorria as ruas da cidade, furioso, sabendo que o seu destino seria a morte. Nas portas das famílias de maior posse, ele afagava-se em seus moradores, como se pedisse para ser libertado da sentença cruel. Porém, pela tradição, a pessoa que soltasse o Boi, assumiria com São João, a promessa de fazer a brincadeira no próximo ano. Isso levava os corações mais amolecidos a pensar duas vezes no nobre ato. Na frente da casa do dono da promessa, ou no terreiro, os Vaqueiros enfincavam o mourão, um pedaço de madeira maciça, enfeitado também com papel de seda, onde o Boi era amarrado. Algumas vezes ele escapava e saía em disparada pelas ruas, jogando ao chão quem se atrevesse a cruzar seu caminho. Os Vaqueiros corriam atrás e mais uma vez o laçavam, e o prendiam. Depois de definitivamente amarrado ao mourão, os Vaqueiros entoavam toadas, e a cada uma delas, puxavam mais a corda até que o Boi estivesse com a cabeça encostada ao mourão. A partir desse momento os olhares ficavam mais curiosos, era chegada a hora de matá-lo. O ritual da morte era complexo e lento, ás vezes durava a metade do dia, ou o dia inteiro. A cada passo da morte, ouvia-se uma toada que explicava aquele momento. O vinho representava o sangue que seria bebido pelos Vaqueiros e pelo Amo durante o ritual. Após a morte, retiravam o lombo, cortavam o Boi em pedaços e pesavam em uma balança improvisada com um pedaço de linha, gravetos e pedras. Depois de comunicar ao dono quantas arrobas haviam sido apuradas, a “carne” era vendida para as pessoas que usavam pedaços de carteiras de cigarros, ou de papel, simbolizando o dinheiro. Em meio a suor e lágrimas, e gemidos dolorosos dos Cazumbas, o Sol se punha, o vento frio de junho, mais uma vez soprava, e todos eram tomados de profunda tristeza pela morte do ser que por muitos dias fez a alegria de uma cidade inteira.