DE COMO QUEIMAR A LÍNGUA DUAS VEZES

Ceres Costa Fernandes

Esta é uma crônica envergonhada. Envergonhada da língua nem sempre moderada desta própria escrevinhadora. Dessa imoderação, sobreveio o incidente que veio de ser mencionado no lançamento do livro de poemas “O Pescador de memórias” do prosador, e agora poeta, Lourival Serejo. Declarou ele, de público, estar um tanto receoso na ocasião por ser um novel poeta e que a colega Ceres Costa Fernandes dissera, em reunião da Academia Maranhense de Letras – sem mencionar algum escritor, note-se em meu favor – que desconfiava muito de prosadores já maduros que enveredavam assim, a modo que de repente, pelo mundo dos versos e poemas.

Na verdade, eu disse e confirmo a minha desconfiança, mas nesse dia o dito tinha outro escritor como endereço. Nem lembrava a nova empreita do excelente prosador Lourival Serejo.

Meu próprio irmão, Ronaldo Costa Fernandes, prosador, com onze livros publicados, oito romances, prêmio internacional de romance e alguns nacionais, faz algum tempo, me comunicou que seu novo livro seria de poemas. Temi e argumentei, por que mexer no que faz sucesso? Não me ouviu. Ainda bem.  Cinco belos livros de poemas depois – o último recebeu o Prêmio de Poesia 2010 da Academia Brasileira de Letras – confirma que é poeta. E dos bons. E o melhor, não abandonou a prosa, continua escrevendo romances e afins. Quem conhece a sua obra, sabe, ele consegue ser bom nos dois gêneros. É ambivalente, coisa não tão corriqueira na literatura, como em questões de gêneros outros.

A fidelidade da maioria dos escritores a um só gênero literário é tendência dominante. Incursões a outros domínios há, mas raras e algumas não duradouras. Não imagino meus gurus da prosa Graciliano Ramos e José Saramago cometendo poemas. Nem o nosso Aluísio Azevedo, também. Casos há de bons prosadores, de contistas a jornalistas que, ao verem aproximar-se a velhice, têm surtos de saudosismo  confundidos com inspiração poética. Acreditando-se poetas, reúnem amigos para publicar choramingas rimadas e com isso destroem toda a reputação de bons escritores que acumularam no decorrer da vida.

Temi que isso se desse com o meu dileto amigo Lourival. Embatuquei. Que vou dizer da sua poesia e, inda mais, depois do ele declarou a meu respeito? Ô língua. Porque fui falar aquilo? Agora estou na linha de tiro. Quem sabe viajo, finjo adoecer ou passo uns tempos sem aparecer na AML.

Preparada para o sacrifício, fui lendo aos poucos o “Pescador de memórias”: ora enlevada; ora emocionada;ora divertida; ora pensativa. Que bom, habemus poeta, não preciso mais sumir de circulação.

O texto é limpo, despojado de palavras ou conceitos falsamente complexos, daqueles em que se espreme o palavrório sofisticado e não pinga uma ideia, um pensamento mais profundo. O autor se inscreve na linhagem dos poetas de expressão leve e significação densa, como Manoel Bandeira que diz, em Belo Belo: “Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples”. O autor de “Evocação do Recife”, também é um cantor das águas, do rio que guarda seus alumbramentos da infância, o Rio Capiberibe.

Jogando essencialmente com apenas quatro vocábulos: Lago, Cidade, Lua, Tarrafa, todos polissêmicos – os demais não passam de reiterações – o autor constrói um mundo. Um mundo de sentimentos, um mundo de memórias.

No imaginário do poeta e da cidade, o vocábulo Lago permeia tudo. Os outros nomes ligam-se, giram, interpenetram-se, afundam, afloram de dentro do significado dessa palavra. Lá estão soterradas, na lama viva, as memórias que são pescadas, uma a uma, pelo fino anzol de uma lembrança que perfura a saudade ou uma “canoa abarrotada de lembranças” trazida pela tarrafa do pescador de memórias.

No fundo está o tesouro, a prata que cega os que ousam mergulhar nos seus mistérios. Até a Lua, tão luminosa e alta, que “domina os telhados das casas” e penetra em todos os espaços, se rende a ele. Só o Lago “tem o privilégio de abrigá-la em suas entranhas”.

Num breve poema, “A Placenta”, ele resume tudo o que o lago significa para a Cidade: “O lago/ é isso mesmo,/agora percebo,/todos percebem:/ O lago é uma enorme placenta/ que alimenta os filhos da cidade.” Eu digo mais, o Lago não é apenas a placenta, mas o próprio útero, o líquido amniótico, em que a Cidade está mergulhada.

Cidade e poeta confundem-se em um único ente: às vezes, ele é a enxurrada, despedaçando-se pelas esquinas; às vezes, o seu canto acorda a cidade ou sua imagem reflete o sol nas pedras ou ele é o filho que joga uma tarrafa no ar e a abarca, toda, com o seu amor, como no poema “Intimidade”.

Termino com o mais belo poema do livro, “Tarrafa do Tempo”, ode ao amor acendrado que o poeta dedica à sua cidade. Com o linguajar das gentes que vivem à beira/dentro d´água, revela: “Não consigo libertar-me desta tarrafa/sou um peixe prisioneiro/condenado/a viver preso na tarrafa do tempo” […] “ o meu crescimento é a garantia da prisão./Quanto mais anos acrescento/mais a tarrafa me prende/com a certeza de que/nunca fugirei.”

Digo, por minha conta, que essa prisão não é má. Feliz de quem teve uma infância rica de sonhos, tantos que o prendam ligado a eles para sempre, terá quando quiser uma lembrança, ou um barco cheio delas, para preencher a vida. E se, mercê da sua arte, construir um universo escrito, serão perenizados os instantes de beleza e exorcizados aqueles que trazem dor, assim como em o “Pescador de memórias”, de modo  belo e comovente, como só os poetas sabem construir.

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