O acervo Juca Gouveia

Trazendo as iniciais de seu primeiro proprietário gravadas na tampa, o baú de brocha que guardou o precioso acervo por quase um século

 

 

Ainda na infância, passava longas horas na casa dos meus avós, no antigo solar dos Lopes da Cunha à Rua Grande. Aquele era o meu espaço de descobertas. O meu avô, João Cunha Gouveia, era quem cuidadosamente preservava os objetos, os quadros, as imagens de santos e um baú que sempre me encantou. Vovô andava com a chave daquele baú sempre no bolso e ai de quem perguntasse o que havia ali dentro. Eu acreditava que fosse um tesouro como o dos livros infantis sobre piratas.

Quando presenciei o baú ser aberto, pela primeira vez, vi um amontoado de livros, papéis e alguns pequenos objetos. O tesouro mesmo, só viria a descobrir pouco depois de sua morte. Como historiadora é que tive a sensibilidade e o olhar profissional para avaliar que se tratava de um rico acervo familiar, através do qual é possível reconstruir redes de sociabilidade, aspectos do cotidiano e dos costumes dos vianenses do início do século XX.

No baú do vovô aparecem documentos comerciais, balanços, escrituras, orações, poemas, cartões, diários e, principalmente, cartas de um longo período que vai de 1907 a 1974! Nessas cartas desfilam frente ao leitor grandes personagens da história da cidade como Ozimo de Carvalho, Sálvio Mendonça, o maestro Miguel Dias, Anica Ramos, Benedito Gomes, João de Parma, Edgard Serzedelo Carvalho, Astolfo Serra, dentre outros. Essas cartas eram endereçadas geralmente a João Carlos Gouveia (Juca), meu bisavô, e a sua irmã Ovídea Ozima Gouveia (Vidoca). Nelas aparecem detalhes da genealogia dos Cunha e Gouveia; Joanna Gouveia com seus filhos Juca, Vidoca, Luiz (Lolô), Izaura, Izabel (Biloca) e ainda os filhos de Isaura e Mariano Cunha; Benedita, Florita, Zoeth, Zeíla e Claudionor (Sinhô).

Este baú pertenceu inicialmente a João Rodrigues da Cunha Júnior, meu trisavô, e traz na tampa uma inscrição com as iniciais JRC e, muito provavelmente, deve ter pertencido ao pai deste que vem a ser meu tetravô ou tataravô. João Cunha Júnior foi casado com Joanna Corina da Cunha e com ela teve três filhos; Maria da Cunha (Maroca), Perolina da Cunha (Sinhá), minha bisavó e, finalmente, Benedito da Cunha (Bibi). As cartas de Juca e Vidoca devem ter sido colocadas neste baú quando Perolina o recebeu por herança do seu pai. Anos depois, o baú passou ao poder do meu avô, João Gouveia, onde o acervo ficou guardado em segurança até chegar às minhas mãos.

Testemunho de uma época, por exemplo, são as notas fiscais de 1907 e 1908 da Casa Matriz, localizada à Rua Grande. Por elas, é possível apreender um pouco dos objetos e da cultura de consumo dos vianenses daquele período, como “tecidos de cambraia e chita, orinol esmaltado e de louça, caixa de charutos, cigarros G. Dias e grades de cerveija”. Aparece ainda o curioso manuscrito do jornal “Adamastor”, Anno 1, nº 2, de 31 de março de 1907, em que consta como iniciadores Mariano Cunha, Antonio Pereira e Antonio Lima. Uma das notícias ali estampadas e que chama atenção é a de uma “Catástrofe na Torre da Matriz” ocorrida dia 24 de março daquele ano em que foi “derrotada partes della, pára-raios, cruz, etc, offendendo a igreja, furando o telhado, o forro, rachando o soalho do coreto, furando telhas de uma sachristia em diversas partes” e avaliando o prejuízo em “um conto de réis”.

Dentre os documentos oficiais, impressiona a conservação da escritura de compra do imóvel que se tornaria o Solar dos Lopes da Cunha. Meu trisavô, João Rodrigues da Cunha Júnior comprou “a morada de casa, coberta de telhas, de taipa e varas e tijolos, edificada em terreno próprio… cuja casa faz frente a rua das Flores desta cidade, canto a Rua Grande”, pelo valor de “um conto de réis moeda corrente” no dia 30 de maio de 1891. Consta ainda a promoção deste meu trisavô para o posto de Segundo Sargento do Batalhão nº 16 da Guarda Nacional da cidade de Viana no dia 5 de agosto de 1885.

As moléstias também aparecem à farta e o nome do famoso Ozimo Carvalho não poderia faltar. Em 1919, no Barradas (povoado de Monção), Juca Gouveia escreveu para a mãe contando o seguinte: “fui atacado de um princípio de congestão, tomei um escalda-os-pés e em seguida me apareceu uma febre com frio e dor de cabeça sem passar, quando milhorei um pouco tomei 1 caixa de pílulas do Ozimo, um purgante de azeite com calomelanos e um cinapismo de pimentas”.

A amizade de Anica Ramos e Vidoca Gouveia é atestada em várias cartas. Quando Anica estava no Maranhão (leia-se São Luís), contava as novidades naquele ano de 1914, dizendo: “Fui ao cinema, é muito bom… visitei diversas avenidas que são verdadeiro colosso, nem só pela bellesa de suas construções como pelo ar que se respira mui agradável” e ainda reclama com a amiga “na tua cartinha trata-me das serenatas que não há mais” em Viana, replicando em seguida: “mas não por minha causa.”

A moda também era assunto comentadíssimo pelas vianenses. Zeíla Cunha escreveu à tia Vidoca contando detalhes da “última moda” da capital. Ela dizia em julho de 1919: “Remetto-lhe a fazenda da saia, não comprei escura porque não se uza mais, combinei com a modista e ella escolheu esse por ser de mais uso. Não encontrei figurino do mez de Agosto ainda não há, aqui encontrei somente ‘Rainha da Moda’ foi eu mesma quem procurou.” 

Outras cartas demonstram interesses políticos e, principalmente, a preocupação em arrumar boas colocações para os parentes. Maroca da Cunha e Benedito Gomes, por exemplo, apressaram-se em tratar com Victorino Freire um emprego para vovô João. Numa carta, datada de 1947, Maroca dizia: “se ele demorar muito, irei falar com o Sebastião Archer.”

O acervo Juca Gouveia ainda revelará grandes segredos. Falta analisar muita coisa e checar dados para montar genealogias. A mim, só resta agradecer ao meu avô, João Gouveia, pela sensibilidade e carinho com que guardou esse tesouro tão importante para a memória de Viana e que, a partir de agora, torna-se de conhecimento público. 

Por Pollyanna Gouveia Mendonça (matéria publicada no Renascer Vianense, edição n° 22)