O lago de Viana e o ecossistema lacustre Viana-Penalva-Cajari

Uma das características mais relevantes da Baixada Maranhense são os seus campos naturais inundáveis, que propiciam, a cada seis meses, uma mudança na sua paisagem, conferindo-lhe beleza ímpar.

Essa deslumbrante alteração cênica chega a ser tão forte, que parece influenciar até o ânimo e o comportamento de quem lá vive, especialmente dos nativos da região. Pelo menos, no que sempre me foi possível observar, na minha vivência de baixadeiro, nascido e criado em Pinheiro, acompanhando o encher e secar dos nossos campos, compartilhando da alegria de ver canoa começando a deslizar nas águas novas do campo, anunciando o inverno (época da piracema e de novos cardumes) e, seis meses depois, a chegada do verão, com o gado bovino pé-duro retornando ao pasto verdejante de capim de marreca e capim Açu.

Acredito ser essa uma das variáveis que exercem forte influência para fazer tão alegre a alma do povo da Baixada. 

A valoração e identificação do papel ecológico das áreas naturais inundáveis – Todavia, apesar de todo esse fascínio natural, até muito recentemente, muito pouco se conhecia sobre a importância ecológica e a complexidade dessas áreas naturais inundáveis, não só as da nossa Baixada, mas de todas as áreas similares espalhadas em várias regiões do planeta.  De modo geral, pouco valor lhes era atribuído, até o mundo científico aguçar o seu interesse pela conservação da biodiversidade.

Para que se tenha idéia desse desconhecimento, um dos primeiros encontros científicos para avaliar as funções desses ecossistemas ocorreu em 1979, nos Estados Unidos, por iniciativa do National Wetland Tecnical Council, quando cientistas de várias nacionalidades concluíram que os campos inundáveis têm, pelo menos, cinco grupos de funções, as quais, pouco mais tarde, em 1983, foram detalhadas por Paul R. Adamus, em dez tipos: (1) Recarga e descarga de aqüíferos; (2) Armazenamento e dessincronização das águas no ciclo de inundação; (3) Proteção do contorno e dissipação de forças erosivas; (4) O papel de retenção desempenhado pelo sedimento; (5) Retenção de nutrientes; (6) Suporte para cadeias alimentares; (7) Habitat para peixes; (8) Habitat para animais selvagens e para macrófitas aquáticas; (9) Habitat para recreação ativa; (10) Habitat para recreação passiva (valor paisagístico) e herança. 

A fragilidade do ambiente – O ecossistema lacustre Viana-Penalva-Cajari constitui o que há de mais expressivo das áreas inundáveis da bacia hidrográfica do rio Pindaré, integrando pelo menos quinze fantásticos lagos, dentre os quais, o Cajari, o Formoso, o Lontra, o Aquiri, o Capivari, e o de Viana, portal de entrada deste ecossistema.

Essa falta de conhecimento tem servido de justificativa para intervenções extremamente danosas ao nosso meio ambiente, a começar pelo equívoco de considerar esses lagos corpos d’água independentes entre si, e que, por essa razão, intervenções feitas em um deles não afetariam os demais. Essa compreensão radicalmente equivocada alicerçou, por exemplo, a construção de uma barragem em Penalva, sem o indispensável Estudo de Impactos Ambientais, portanto, sem a preocupação com os danos que essa obra iria provocar no ecossistema como um todo. Os efeitos foram quase que imediatos, afetando toda sua hidrologia.

O ecossistema representado pela bacia lacustre Viana-Penalva-Cajari é um só, indivisível, inseparável. Apenas com denominações tópicas diferentes, para referenciar os ambientes. Além desse aspecto fundamental, observe-se que, pelo moderno conceito ecológico, corpos d’água não separam ambientes, territórios, ou povos. Ao contrário, são fatores de integração, portanto, o ecossistema tem função integradora. 

Criação de bubalinos – Outro erro gritante e de conseqüências desastrosas refere-se à introdução do búfalo na Baixada, que atualmente se concentra notadamente no ecossistema aqui tratado. A decisão de introduzir essa espécie fundamentou-se, também, no entendimento corriqueiro nos anos cinqüenta, de que as áreas inundáveis da região eram imprestáveis e subutilizadas, pois o gado bovino pé-duro, que lá se criava, em harmonia com a natureza, apresentava baixa produtividade. A solução, portanto, seria “introduzir o gado bubalino, rústico, resistente e produtivo, para desenvolver a Baixada”. Por absurdo que pareça, não lembraram de que a mais importante vocação natural dos lagos e dos campos inundáveis, sem qualquer dúvida, sempre foi (e continua sendo) a produção natural do pescado que dá alimento, ocupação, renda e vida para tanta gente, a custo zero.

Vale, para esta reflexão, lembrar-se de que o gado bovino sempre conviveu harmonicamente com os campos da Baixada, retirando-se deles, no período das águas, e retornando no verão.

Não se passaram cinco anos, e os malefícios ambientais causados pelo búfalo, representados pelo assoreamento dos lagos e pela redução da produção de peixe, eclodiram, produzindo conseqüências sociais e gerando graves conflitos (muitas vezes resultando em mortes), e quase sempre contando com a conivência do poder público, especialmente do judiciário. E o anunciado “desenvolvimento” da Baixada mostrou-se mais um “conto do vigário”, utilizado para o aumento da fortuna de pouquíssimos proprietários de búfalos que, sem nenhuma despesa, criam os animais soltos nos campos, nas beiras dos lagos e nas lagoas que se formam no início e no fim da inundação. 

Outras agressões graves – Além dos búfalos, outros fatores seguramente representam grave ameaça à sobrevivência desse ecossistema e à perda da qualidade de vida do seu entorno humano, dentre os quais estão aqueles associados à falta de percepção da população sobre a importância dos recursos ambientais para sua vida: devastação das matas ciliares, derramamento de óleo das embarcações, pesca predatória (inclusive no período da piracema), lançamento de esgotos e de lixo nos lagos ou nos campos etc.

Outro tipo de ação criminosa que vem sendo desenvolvida aqui (como em toda a Baixada), à luz do dia, e que denota, de forma inequívoca, a omissão dos poderes públicos: a apropriação ilícita dos campos naturais, por pessoas inescrupulosas que, simplesmente, entenderam ter mais direito sobre o patrimônio público do que toda a população. Por isso, cercaram enormes extensões de terras, embora sabedores de que estas não lhes pertenciam. Em palavras mais claras: furtaram o patrimônio público. Uma indignidade!          

Mudança de mentalidade – A conservação desse ecossistema e a preservação daquilo que deve ser preservado requerem, por imprescindível, que a população desperte para a importância que tem essa reserva d’água, estocada na bacia, passando a enxergá-la como fonte produtora natural de alimentos, que lhe mata a fome, propicia lazer e alimenta o espírito de toda essa gente, assegurando-lhe o sustento, através do trabalho e renda. Além de unir todos os locais situados no seu entorno, permitindo, às comunidades que os povoam, transportarem-se por embarcações e fazer escoar a sua produção.

Impõe-se, pois, como fundamental, que todas as comunidades de usuários diretos e indiretos desses recursos passem a compreender que esse fantástico patrimônio natural comum, isto é, o ecossistema, pertence a todos e que nenhuma pessoa, nenhuma autoridade (seja do poder que for), tem o direito de fazer qualquer intervenção sem, antes, submetê-la a uma ampla e democrática discussão, com participação popular.

À medida que esse nível de esclarecimento se instalar no seio da população, o remédio chegará naturalmente, pois passará a haver o controle social, que, na prática, quer dizer: a população passará a comandar as decisões sobre os bens e serviços públicos.

Essa mudança de mentalidade, entretanto, não ocorre num piscar de olhos. Ao contrário, é um processo demorado que requer uma conjunção de esforços para, de forma determinada, se iniciar, já nos bancos escolares, um trabalho que resulte no despertar para a verdadeira noção da cidadania.

Enquanto esse momento não chega, muito há por fazer e com a máxima urgência.

Ações devem ser efetivadas para pressionar o poder público a impedir, definitivamente, a criação de búfalos nos campos naturais. Faz-se igualmente urgente a retomada dos campos cercados, o que requer uma profunda ação discriminatória das terras públicas da região, reincorporando ao patrimônio comum, os quinhões usurpados.

Um grande programa de recuperação das matas ciliares com as espécies nativas poderia conter o avanço do assoreamento, uma vez que já se conhece o papel protetor que elas desempenham junto aos corpos d’água. Do mesmo modo, tem-se de estabelecer como meta o estudo científico sobre as espécies nativas de peixes, com vistas ao repovoamento do ecossistema.

Não se justifica que as populações dos municípios de Viana, de Penalva e de Cajari tolerem que gestores municipais continuem a jogar lixo nos campos e esgotos in natura nos lagos.

São estas as reflexões de quem verdadeiramente estuda e ama a Baixada. 

José Policarpo Costa Neto – Professor da UFMA, Mestre em Economia Rural pela UFCE e Doutor em Hidráulica e Saneamento pela EESC-USP (matéria publicada no Renascer Vianense, edição n° 18)