SÃO CRISTÓVÃO – Um caldeirão da mais genuína cultura vianense

 

 No lago de Maracaçumé, a procissão do Divino segue puxada por duas embarcações: a de bandeira branca na proa conduz a pombinha e a de bandeira vermelha, a coroa do Espírito Santo. 


Por sua história singular, cultura diversificada e aprazível localização, o povoado de São Cristóvão destaca-se – neste começo do século 21 – como uma das mais importantes e significativas comunidades do município de Viana

Situado à margem leste do lago de Maracaçumé, distante cerca de 50 quilômetros de Viana, o povoado de São Cristóvão já se tornou alvo de pesquisas por parte de antropólogos (inclusive estrangeiros, como foi o caso da suíça, Sandra Carmen Re, que morou no povoado por mais de dois anos), sociólogos e estudiosos de áreas afins.

O povoamento da localidade teve origem no engenho de açúcar de propriedade do Sr. Mariano Sousa e no núcleo de 100 escravos que ali trabalhavam no plantio da cana e na fabricação do açúcar mascavo e aguardente. Com a assinatura da lei áurea, em 1888, o proprietário do engenho faliu e se mudou para Viana, abandonando a Casa Grande, a qual ficaria desabitada por longo tempo.

Depois de conquistarem a liberdade, mas isolados naquele distante lugarejo, os negros passaram a viver do cultivo da terra e da abundante caça e pesca, ofertadas pela natureza generosa da região. Oriundos em sua grande maioria da Guiné, os integrantes da nova comunidade conseguiram manter seus ritos religiosos e seus mais originais costumes por muitas e muitas décadas.

Segundo pesquisa feita pelo Sr. José Soeiro e publicada recentemente no livro “Viana te amarei por toda a vida”, as terras de São Cristóvão foram compradas, em 1906, por alguns ex-escravos e registradas no Cartório do tabelião Ulisses Leopoldino Rodrigues, em Viana.

 O Dr. Sálvio Mendonça, neto do antigo senhor de engenho, no livro de memórias “História de um Menino Pobre”, relata seu contato direto com a coletividade de São Cristóvão, acontecido no ano de 1902, quando tinha apenas 10 anos de idade. O então garoto foi levado pela tia e madrinha Antonina que, por questões econômicas, resolvera deixar Viana para morar na Casa Grande abandonada em companhia do marido, João Araújo.

Essa interessante experiência renderia marcantes lembranças ao futuro médico e cientista, como é fácil de perceber pelas várias páginas de suas memórias dedicadas à cultura singular de São Cristóvão (a título de sugestão, vale a leitura dos capítulos XII, XIII e XIV da citada obra, pela riqueza de detalhes sobre o povoado, o condomblé, a festa do Divino e o Bumba-meu-boi ali realizados no início do século passado). 

O Divino Embarcado – Talvez por não possuir a pompa e o glamour do Divino de Alcântara, a também secular e tradicional festa do Divino Embarcado de São Cristóvão permaneça ainda desconhecida do grande público maranhense.

Realizada na quinta-feira em que o catolicismo comemora a Ascensão do Senhor (data móvel, mas que sempre cai entre os meses de maio e junho), quando os lagos estão cheios, a comunidade remanescente do antigo engenho, ao longo dos últimos 150 anos, adaptou os festejos do Divino à geografia local, introduzindo embarcações enfeitadas de bandeirolas coloridas para o transporte da pombinha branca e de seu séqüito de caixeiras. Daí, o nome de festa do Divino Embarcado.

O culto à terceira pessoa da Santíssima Trindade começa de véspera, na quarta-feira, iniciando-se o dia com alvorada, missa, transporte do mastro para um lugarejo vizinho e toques de caixa por toda noite. Na quinta, quando convidadas, comissões de caixeiras das cidades e localidades próximas são recebidas pelos organizadores. Ao toque de caixas, cada grupo que chega tem de pedir permissão para participar da festa. Após o almoço, realiza-se a animada procissão lacustre, sob os estampidos constantes dos foguetes. Duas embarcações, diferenciadas pela cor de seus estandartes, seguem na frente: a que leva na proa a bandeira de cor branca transporta a salva com a pombinha e um grupo de caixeiras; no barco de estandarte vermelho segue a coroa do Espírito Santo e um segundo grupo de caixeiras. Todo o percurso sobre as águas é animado pelas cantorias e batidas das caixas.

No vizinho povoado de Prequeú, os integrantes da procissão saltam e se dirigem a uma das casas, sempre ao som das caixas e das toadas tiradas pelas mulheres (os homens atuam como coadjuvantes carregando os estandartes, tocando fogos, transportando o mastro ou conduzindo os barcos). Na porta, os donos da casa visitada recebem a pombinha e a coroa das mãos das crianças e as colocam sobre a mesa da sala.

Durante o resto da tarde, intercaladas por pequenas pausas, as caixeiras prestam louvor ao Divino. Antes do anoitecer, trazendo o grande mastro em um dos barcos, a procissão faz o caminho de volta a São Cristóvão. No porto, depois de recepcionados pelo imperador, imperatriz e mordomo, seguem em direção à pequena igreja, onde a cantoria e o batuque das caixeiras se estendem até a madrugada.

Tudo isso serve apenas de preparação para a verdadeira festa do Divino, que se realiza em novembro, quando novamente o som das caixas se faz ouvir em São Cristóvão. A diferença entre os dois eventos fica por conta da procissão embarcada, a qual só acontece no inverno. Em novembro, a procissão é realizada a pé pelos campos em volta do povoado.

O Bumba-boi Uma das coisas que chamou a atenção da antropóloga suíça foi o fato de aproximadamente 80% dos moradores de São Cristóvão possuírem o sobrenome “Sousa”. Tal fato poderia encontrar explicação na justificativa apresentada pela maioria dos estudiosos de comunidades negras. De acordo com estes pesquisadores, os escravos não possuíam sobrenome. Assim, após a abolição da escravatura, ao procurarem os cartórios para obtenção de seus registros, normalmente adotavam o sobrenome de seus antigos proprietários (ou quando não, optavam por nomes de santos, árvores ou animais silvestres). É interessante lembrar aqui que o antigo dono do engenho de São Cristóvão se chamava Mariano Sousa.

Pesquisas à parte, o mais importante é que esta comunidade soube preservar seus costumes e tradições por mais de um século. O bumba-boi é outro exemplo disso, pois segundo contam os organizadores do “Boi Nossa União”, a brincadeira vem de tempos remotos. Paralisado por alguns anos, o boi ressurgiu com força total sob a liderança do falecido Diomar Leite e há 18 anos vem urrando e fazendo bonito nos terreiros do Maranhão. Em São Luís, apresenta-se há mais de uma década e por sua beleza e hoje rara autenticidade, alcançou o nível do Grupo “A” da Secretaria Estadual de Cultura, colocando-se ao lado de batalhões tradicionais da ilha, como os bois da Maioba e do Maracanã ou dos bois de orquestra de  Morros e Axixá.

O atual líder do grupo, Jose Manoel Sousa, o popular “Baeco” fala com orgulho do brilho maior de sua comunidade e não é para menos. Composto de 150 brincantes o “Nossa União” traz em suas fileiras o patrão, o amo, pai Francisco, mãe Catirina, cazumbas, índias, caboclos de pena, burrinhas, cacique rolador do boi, carregadeira de santo, bailantes homens, bailantes mulheres e vaqueiros. 

Preocupado com o futuro deste caldeirão de cultura, o Sr. José Soeiro lembra que as novas gerações dos Sousa e dos Leite, “que aumentam cada vez mais com o nascimento de netos e bisnetos”,  têm a obrigação de dar continuidade à tradição cultural de São Cristóvão. A julgar pelo esboço da tese da antropóloga Sandra Carmen Re, provavelmente essa não será uma tarefa difícil, pois o modelo de educação infantil observado na comunidade de São Cristóvão induz meninos e meninas a respeitarem os pais e seguirem o exemplo dos mais velhos.

Por Luiz Alexandre Raposo (matéria publicada no Renascer Vianense, edição n° 20)