SERRA-VELHOS

Com muito humor e malícia, a brincadeira atazanava os idosos vianenses do passado

 

Na Baixada Maranhense, o dia 19 de março, além de consagrado a São José, era também dedicado a um evento conhecido como “serra-velhos”, brincadeira de origem portuguesa na qual um grupo de pessoas, durante a madrugada, ia até a casa do escolhido para ser serrado, e com um palavreado nada agradável, simulava o inventário dos bens  imprestáveis a serem distribuídos aos herdeiros daquele indivíduo.

O ato desenvolvia-se da seguinte maneira: depois de ser declarado morto pelos serradores, e ainda em meio ao choro dos familiares (interpretados pelos acompanhantes do grupo), era feita então a partilha dos objetos pessoais deixados pelo inventariado. A discriminação da herança e seus respectivos herdeiros era a parte mais cômica da brincadeira.

No silêncio da noite, um serrote e uma lata de querosene eram imprescindíveis para propiciar o som funesto que servia de fundo para a leitura do testamento. Enquanto alguém ia serrando a lata, o líder do grupo fazia a leitura do testamento em voz alta. A lista dos tais “bens”, impreterivelmente, incluía dentaduras, penicos, cachimbos, redes furadas, ceroulas (espécie de cuecões usados pelos homens no passado) e por aí a fora. Entre os herdeiros figuravam não apenas os parentes da “vítima”, mas também os seus desafetos.

Em Viana, essa macabra brincadeira fez parte do folclore local durante muitos anos. Na arte de serrar velhos, naquele tempo, sobressaíam-se  Dico de Estefânia, Zé Marrequeiro, Jaspe e Zé Bacelar. Quatro exímios serradores que, acompanhados por um séquito de apreciadores da brincadeira, saiam pelas ruas a fazer o inventário dos velhos mais rabugentos da cidade. Bastava chegar a noite do dia de São José e o teatro de rua se repetia, apenas variando as pessoas escolhidas para serem serradas.

Naturalmente, a maioria dos escolhidos não acatava com bom humor o fato de se tornar motivo de pilhéria pública. Apenas o cidadão conhecido como João Carteiro, aposentado dos Correios e Telégrafos, mostrava-se simpático com a gozação. Era o único que, depois de “serrado”, costumava abrir a porta de sua casa e oferecer café com bolo de tapioca e outras iguarias aos seus algozes fictícios. 

Domingos Português – Alguns episódios referentes ao serra-velhos marcariam a memória coletiva vianense como foi o caso do então conhecido cidadão Domingos Português.

Era eu bem criança quando o conheci como dono de um comércio que ficava  numa esquina da Rua Grande, em frente à Praça da Prefeitura. Dizia ser natural de Portugal, daí o cognome de Domingos Português. Contava ele que aos 11 anos de idade veio com uma família portuguesa para o Maranhão e nunca mais voltou à sua terra natal. Primeiramente fixou residência no Aquiri, município de Matinha, onde desenvolveu a atividade no ramo do comércio e se casou com  dona Eulália, com quem teve quatro filhos: João, Maria Antonia, Dadica e Rosário. Do Aquiri, depois do comércio consolidado, mas visando melhor exploração na mesma atividade, mudou-se para o povoado Piraí, também município de Matinha. Finalmente transferiu-se para Viana, cidade na qual teria oportunidade de desenvolver seus negócios com  maior sucesso.

Seu Domingos era introvertido, caladão. Era um homem respeitado e respeitoso. Caminhava pelas ruas de cabeça baixa e raramente cumprimentava as pessoas. Com um padrão de vida razoável pertencia à classe alta da sociedade vianense. Tinha uma família bem estruturada. Os filhos, ao contrário do pai, eram jovens extrovertidos, comunicativos e cordiais que, por essas qualidades, conquistavam muitas amizades e enchiam a cidade de alegrias.

Naquele tempo, Viana  tinha uma população pequena e por isso todo e qualquer evento atrativo era bem explorado e apreciado por todos, ou melhor, por quase todos… 

A serração do Domingos Português – Assim, num certo 19 de março desses tempos idos, depois de serrarem João Carteiro e serem bem obsequiados, seguiram para a casa de Seu Neco, outro velho que tinha duas filhas mais feias que pane de avião em pleno vôo. Depois de “matarem” seu Neco, começou a divisão da herança imprestável. Dico de Estefânia, mais afinado na condução daquela brincadeira, era quem começava a partilhar os bens. Daí pra frente, a partilha se estendia com a participação dos outros serradores. No calor do inventário, Seu Dico,  reportando-se às duas filhas do Seu Neco, perguntava: “quem vai ficar com os dois camburões de sena?” E os acompanhantes respondiam em coro. “Eu não! eu não!”  Consumada a serração do Seu Neco, o grupo seguiu para a casa de Domingos Português, pois seria ele a próxima vítima.

A cidade, naquela época, não possuía  energia elétrica, e o céu daquela noite estava carregado de nuvens escuras, dificultando a visibilidade dos serradores, mas a língua de Seu Dico, de Zé Marrequeiro, de Jaspe e de Zé Bacelar estavam mais negras que o negrume da noite. E então foi iniciada a insolente seção de serrar o Domingos Português.

No momento que faziam a cômica divisão dos bens ouviram um corre-corre dentro da casa do serrado. De repente, a janela foi aberta e o velho apareceu com um revólver 38 na mão, abraçado pelas filhas que lhe pediam para não fazer aquilo. Sem atender a qualquer pedido, seu Domingos disparou três tiros para cima, fazendo com que serradores e acompanhantes saíssem em desabalada carreira, com exceção de Seu Dico, que atrás de um poste, observava toda aquela confusão para contá-la no dia seguinte, recheada de farta criatividade humorística. 

Nota da redação: Originalmente trazida pelos portugueses com o nome “Serração ou Serra da Velha”, a tradição se espalhou por diversas regiões brasileiras, notadamente no Norte e Nordeste. Diferentemente de Viana, na maioria das cidades a serração acontecia durante a Páscoa,  na noite da chamada quarta-feira de Trevas.

Em nossa cidade, a brincadeira também era conhecida como Serra-velha.

Por Carlos Nina Everton Cutrim (matéria publicada no Renascer Vianense, edição n° 33)