Livro Seleta de dispersos

Era esse Raimundo Lopes […] o gênio talhado para os altiplanos da ciência. Foi sempre um retraído. Fugia às exibições de cabotinismo. As suas horas, desde estudante foram sempre preenchidas pelo bom estudo das coisas sérias. Estudava sempre. Nunca deixou de ser um excelente e brilhantíssimo estudante, mesmo até às portas da morte. Dizia-se um velho estudante. E, no entanto, era um sábio!

Etnólogo dos mais notáveis do Brasil, quiçá da América, toda a sua obra, mais conhecida no estrangeiro, mereceu ruidosa consagração nos grandes centros científicos mundiais, sendo citado o seu nome como de um verdadeiro mestre. A nossa terra, todavia, pouco se houvera apercebido da obra notável desse maranhense ilustre […]. E, entrementes, o Maranhão enluarava todo o seu coração de amor […]. E foi por isso que ele disse tão alto em memorável estudo da obra de Gonçalves Dias, o excelso vare americano!

Raimundo Lopes viveu a vida de renúncia, vida de santo beneditino […]. Ele não tinha ambições, não tinha inveja de ninguém e, por isso mesmo, não tinha inimigos, porque o seu coração era um doce solar aberto para acolher e agasalhar a todos os sedentos de luz e de saber que recorressem à sua con-soladora bondade.

Foi o Lopes tudo quanto quisera ser, e para tanto lhe sobravam talento e cultura: poeta, romancista, professor, cientista. Estilista formoso, manejava o vernáculo com segurança e maestria, podendo qualquer de suas páginas figurar nas antologias. Mesmo a sua estreia com O torrão maranhense foi uma revelação dum escritor genial, aos 17 anos, escrevendo um livro de alta investigação científica. Tudo nele era grande: a inteligência e a cultura, o coração e o amor com que soube servir o Brasil, engrandecendo mais ainda, com o seu nome, o patrimônio de glórias de sua terra. Só o físico lhe era pequeno, a contrastar com a grandeza do seu espírito apolíneo.

Como todo homem notável, o Raimundo Lopes também deixou o seu anedotário. Era muito distraído. O hábito inveterado da leitura contribuiu em parte para fazê-lo assim. Vou contar-vos uma. Seu Dico (assim o tratávamos na intimidade) entrou, certa feita, pela manhã, no templo do Carmo lendo um livro. Hora da missa. A nave repleta de fiéis. Seu Dico entrou, ajoelhou-se, sem falar com ninguém, e continuou a ler o livro. Aproximei-me, bati-lhe uma palmadinha no ombro. Ele se virou, rindo. Depois, reparei que o Lopes, ao em vez dum Adoremus, lia, escandalosamente, À margem da história, de Euclides da Cunha!

Mais esta. E esta foi no Rio, anos atrás. Tomamos o bonde. Seu Dico, Vinicius de Berredo, Vieira dos Reis e eu. Noutro banco, à frente, uma linda e gentil carioca lia, ou fingia ler, um livro em francês. Nós tagarelamos. O Dico Lopes, porém, esticou-se sobre a página do livro e por cima dos ombros da senhorita começou também a ler o mesmo livro. Mas… a certa altura, Dico, ávido e in­teressado, devora a página e, naturalmente, mete o braço para a frente e vira a página do livro. A mocinha espanta-se e, virando-se: – O senhor também lia, hein? Com que então, tem-no aqui…

E passou o livro para ele. Rompemos numa gargalhada. Ele, porém, não se deu por achado. Pediu desculpas, entabulou uma palestrazita com ela, e depois já eram como dois velhos conhecidos. Depois… e depois?

Dico Lopes!… O maior da nossa geração.

Crisóstomo de Sousa

(Correio da Tarde, São Luís do Maranhão, 13.mar.1943)