CRÔNICAS DE ACADÊMICOS DA AVL

  PARA FALAR DE UM AMIGO

José Raimundo Santos (*)

Acadêmico da AVL

         A citação epistolar “Tudo que o homem semear, isso também colherá”, atribuída ao apóstolo Paulo, lança reflexos sobre o que se viu de consternação quando faleceu o cajariense, mas vianense de coração Eider Furtado da Silva. Não foi, porém, o seu nome santo de batismo que o firmou em popularidade e estima dentro e até fora dos limites da sua querida Viana, a qual dedicava irrestrita afeição. Foi o nome padre Eider. Com este ele cunhou o seu nome adotivo forte. Percebia-se, então, naquele transe, que Eider, desaparecido, colhia de lágrimas o que o Eider, vivo, semeou de benquerença ao longo de seus 95 anos de idade, vividos na familiaridade da terra berço.

        E toda aquela multidão pesarosa que veio espargir o seu último olhar, sobre o corpo inanimado do amigo, o fez somente movida pela voz do coração, e nunca como praxe social encaminhada a um homem afamado pela riqueza ou pelo poder. Nada disso. Embora não fosse, na legítima acepção da palavra, Eider não foi rico e nem poderoso. Eider era, sim, a genuína corporificação do vianense modesto – sem preconceito e sem empáfia.

        Antevejo no pensamento de Eider, calmo e sem agonia, alguma verossimilhança com o que diz em versos, sobre a morte, o poeta Fernando Pessoa:

        “… O que é preciso é ser-se natural e calmo,

        Sentir como quem olha,

        Pensar como quem anda,

        E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,

        E que o poente é belo e é bela noite que fica…

        Assim é e assim seja.

        Para encontrar os primeiros instantes de minha estima por ele, e a dele por mim, é preciso auscultar o tempo, um tempo longínquo que já fora engolido por inovações e benefícios – nem sempre bem compartilhados, mas também por tantas coisas deterioradas que nos fazem até duvidar da esperança de viver em um mundo mais compassivo. A nossa estima mútua não exigia a visita assídua, e nem por isso deixou de ser vigorosa.

        Tenho para mim que o conheci no Grupo Escolar “Dom José Delgado”, o distinguido Colégio do Padre – referência ao seu infatigável fundador, Monsenhor Arouche.  Era essa Escola a grande referência do Município e fora dele. A datar desse tempo, ele nunca mais sumiu de minha vista e de minha estima.

        Sacerdote convicto e presença assídua em eventos de qualquer natureza – fossem festivos, religiosos, culturais ou cívicos. Assim era o nosso amigo extinto, um homem trabalhador carregado de civismo.

        Na sua passagem por este mundo, Eider edificou uma grande morada para abrigar a família e eventualmente parentes que vislumbrassem naquela casa e naquele coração um espaço acolhedor para mitigar as suas adversidades. É esse gesto que me faz lembrar a iniciativa de sua sobrinha Sansão. Ela está empenhada na transformação da casa onde morou por muitos anos o padre Eider, em museu, cujo nome será “Museu Padre Eider Furtado da Silva”. Eis uma obra de valor extraordinário que se consolida num tempo em que se vai esquecendo o costume sacrossanto da hospitalidade.

        São Francisco de Assis no seu Cântico das Criaturas “louva o Senhor, por nossa irmã, a mãe Terra, pela irmã Lua, pelo irmão Sol… também louva o Senhor por nossa irmã, a morte corporal.” A morte, no entanto, dentro das limitações humanas, configura-se como uma nota triste e irrefutável a que se foi lançado desde a concepção. Em outro momento, o mesmo Santo, assevera-nos que é morrendo que se vive para a vida eterna. Eider, então, renasceu para essa nova vida bem-aventurada. E seu corpo, talhado no barro e animado pelo sopro de Deus, renascerá, também, aqui mesmo na Terra – nas árvores, no vento, nos pássaros… e nas nossas saudades.

        Monsenhor Eider, você é singular entre os seres humanos. O seu rosto é o espelho da alma. O sorriso é genuíno e a tristeza também. Seus olhos saúdam os bem intencionados e dentre tantas qualidades o admiramos por ser verdadeiro, íntegro, amigo e companheiro.

        Parabéns! Você estará sempre nos pensamentos, e hoje especialmente porque é seu aniversário de falecimento.

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            (*) Pesquisador vianense nascido no povoado Piraí, engenheiro agrônomo, primeiro-tenente da Reserva Remunerada da Polícia Militar do Maranhão, ex-escrivão da Justiça Militar do Estado, ex-presidente da Fundação Conceição do Maracu e membro da Academia Vianense de Letras. 

 

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CHEIRINHO DE TERRA MOLHADA


 Elves Franco

Acadêmico da AVL

 

No inicio do período chuvoso, tudo era mais bonito, o cheirinho de terra molhada anunciava as mais variadas possibilidades de diversão nos quintais e nos “campinhos” vianenses. Ao amanhecer, o chão de terra batida se tornava um verdadeiro parque de diversões. Uma das principais e mais disputadas brincadeiras era o sucho, que chamávamos de “xuxo”, que nada mais era que um pequeno pedaço de ferro pontiagudo. A brincadeira que podia ter dois ou mais participantes, consistia em desenhar pequenos círculos na terra, que representavam cada jogador. O objetivo era trancar o oponente com linhas traçadas que de tão próximas, impediam a saída do outro jogador. E nessa simples e mágica distração, passávamos a manhã inteira. No fim da tarde, quando o sol estava mais “frio” – assim costumávamos falar em Viana, – a brincadeira era bolinha de gude.  Aproveitávamos a mesma terra umedecida pela chuva para fazer “borrocas”, cavidades circulares feitas com o calcanhar para que as bolinhas de gude pudessem cair dentro. Nesse período, as cercas das casas ficavam cobertas por uma planta chamada Melão de São Caetano, que para nós, era Boi de São Caetano ou Boi do Scaitaua. Em seus frutos espetávamos palitos de fósforo para fazer pernas e chifres, construíamos imensos currais e a brincadeira parecia nunca ter fim.  À noite a garoa caia sobre a cidade, e sob as luzes dos postes amontoavam-se os “caturros”, besouros pretos, que para alguns eram uma praga, davam asas à nossa imaginação, e por incrível que pareça, eles também nos serviam de brinquedos, pegávamos os maiores e os chamávamos de “bois”. A disputa era vencida por quem tinha os maiores “caturros”.

Quando chovia grosso pela manhã, barquinhos de papel tomavam conta da nossa rua. Os regos se transformavam em riachos e nos possibilitavam corridas dos mais diversificados tipos de embarcações feitas de papel, litros, e até mesmo pedaços de chinelas. Alguns adultos também costumavam brincar, só que os barcos deles eram feitos com latas de querosene, armados com pedaços de madeira e vedados com breu. Eram verdadeiras obras de arte, alguns pintados e ricamente detalhados. Corríamos atrás dos barquinhos que deslizavam na enxurrada, hora afundando, hora emergindo. O trajeto era do canto da casa de Seu Elzinho, na Rua Dr. Castro Maia, com a Rua Professora Amélia Carvalho. A brincadeira chegava ao fim, na vala conhecida como Grota, que ainda hoje existe num determinado ponto dessa última rua. De lá, o banho na chuva continuava nas biqueiras das casas, até a hora do almoço, ou até que o frio enrugasse nossas pequenas mãos e fizesse bater nossos queixos.

Bons tempos aqueles. Hoje, tudo se tornou muito perigoso, inclusive os banhos na chuva, pois a incidência de raios parece ter aumentado e, além disso, boa parte das crianças já não tem mais a mesma pureza da infância de outrora, quando, com a ajuda da chuva, conseguíamos fazer dos terreiros da cidade e dos nossos quintais o melhor lugar do mundo.