“RECORDAÇÕES DO SOBRADO GRANDE”

Casa Ozimo CarvalhoNão pude deixar de sentir um misto de alegria e nostalgia, ao tomar conhecimento de que o terreno onde existiu o sobrado residencial do casal Florita e Ozimo Carvalho fora doado pela Prefeitura Municipal de Viana para a Academia Vianense de Letras – AVL.

Aquele chão vazio, sem o Sobrado dos Carvalhos, sempre me incomodou. Um sobrado erguido é memória viva, enquanto no chão, é memória morta, que só será lembrado pelas gerações que o viram edificado, vindo a desaparecer. Portanto, a doação do terreno para a AVL é muito mais do que abrigar a Academia. É trazer de volta uma parte significativa da história de Viana, que reúne, de um lado, a marca residencial arquitetônica portuguesa e, de outro, a história da família de um dos homens mais ilustres que a cidade de Viana já teve.

Um sobrado, como já foi dito, é motivo de história que, por si só, já bastaria para se manter conservado e preservado. Viana, ao longo dos tempos, tem perdido um dos seus legados vivos da cultura arquitetônica portuguesa – seus sobrados e casarios com suas fachadas em azulejaria, além do valor social.

Aquele chão vazio, no antigo Canto da Farmácia de Tio Ozimo, nunca foi vazio, porque ali residem histórias que se mesclam com a minha família materna. Minha mãe, a senhora Enide Oliveira Gomes, que era sobrinha da senhora Florita Cunha Carvalho, que, por sua vez, era esposa do farmacêutico Ozimo Carvalho, proprietário do Sobrado, contava-nos da vida naquela casa, como se estivéssemos vivendo antigas histórias de reis e rainhas. Era uma família numerosa, de costumes aristocráticos, que cultivava princípios e valores próprios daquela época.

Da minha memória afetiva, guardo algumas passagens naquele Sobrado. Novamente o Sobrado, como palco destinado a abrigar as histórias de famílias e de seu tempo, como, também, foi muito bem celebrado numa das mais belas histórias escritas da narrativa da literatura brasileira, O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo.

Não saberia precisar quantos anos tinha, mas aquela escada à frente, mamãe segurando a minha mão, jamais saiu do meu pensamento, quando pela primeira vez, recordo-me, entrei na casa de Dindinha Florita, como era conhecida por todos lá de casa. Após a subida, uma sala grande, que ocupava de ponta a ponta, demonstrava que tudo ali era grande. Seguindo à esquerda, em direção à janela que dava para a rua Cônego Hemetério, avistava-se toda a pequena travessa, que, de um lado, terminava na entrada da Praça da Matriz e, do outro, no Sobrado Amarelo que, na minha época, era conhecido como Sobrado de Zé Pinheiro. A sala era decorada com móveis de madeira da época, com cadeiras e uma namoradeira com assento de palhinha amarela e duas cadeiras de descanso de madeira completa, que devem ter embalado o casal Carvalho nas horas de privacidade com os filhos. Como parte da decoração, bibelôs de louças brancas com estampas de decoração, lenços bordados de linho branco, jarros e quadros na parede completavam o ambiente próximo da janela que dava para a casa de Seu Levi Coelho. Em sentido contrário, a sala continuava, separada por um relógio grande de parede, com uma mesa grande e cadeiras de madeira e que sempre estava posta de acordo com o horário do dia. Ali, o Dr. Ozimo e Dona Florita se reuniam para as refeições e as conversas familiares com toda sua prole. Era uma família numerosa, que atendia ao modelo das famílias da época. Foi mamãe que nos apresentou um a um, com seus nomes e maneiras de ser. Os filhos receberam nomes da família ou ligados à Bíblia. Izaura (Zazinha), Celeste, Carmem (Carminha) e Helena (Leninha) formavam o primeiro grupo das mulheres, seguido por Durval, o primeiro menino da casa. Logo vieram Ester, Judite, e os meninos Geraldo e Dulcídio, que completaram o álbum dos rebentos do casal.

Lembro-me, com vaga precisão, de uma festa bonita e animada, com um grande bolo branco confeitado, desses que vão formando camadas, em formato de pizzas, num dia festivo. Por minhas irmãs, soube que se tratava do dia em que o casal completou suas bodas de ouro e, ao mesmo tempo, foi celebrado o casamento de Geraldo com a senhora Helena Lauande. O evento foi um dos maiores que a sociedade vianense já vivenciou. Dindinha Florita foi quem cuidou de tudo, fazendo doces, salgados, sobremesas e a decoração da casa para receber os convidados que vieram de São Luís, do Rio de Janeiro e das cidades vizinhas.

Outras vezes, subi aquelas escadas, geralmente à tarde, antes das quatro horas, acompanhando a minha mãe, que ia passar a tarde com dindinha Florita, àquela altura, doente e assistida por todos da casa. O clima era de silêncio e respeito. Uma tristeza cobria o Sobrado. Quando chegávamos, íamos até o quarto do casal, que ficava entre a sala comprida e a outra sala de visita, onde, em uma rede branca, via-se o rosto da tia da minha mãe numa palidez e com um semblante distante. As filhas, que a essa altura já estavam casadas, e aquelas que moravam fora de Viana revezavam-se entre Viana e São Luís, cobriam a mãe de carinho e cuidados. Naquele ambiente, eu não demorava muito. Ia sentar na sala, mas o meu interesse, como de toda criança, era olhar pela janela, sob recomendações de quem passasse pela sala – cuidado, não vai te debruçar para fora da janela!

Quantas partidas o Sobrado teria assistido de maneira firme e impecável! Cada filha e filho que saiu para estudar em São Luís e não voltou mais deve ter deixado lembranças saudosas. A despedida da matriarca, uma página de tristeza que se arrastou por toda a vida no semblante do marido viúvo. Assim como a descida do caixão, com o corpo de tio Ozimo, que acompanhei de perto, sob os cuidados dos homens, que fizeram questão de carregá-lo, pois não era apenas um corpo inerte, mas se tratava de um grande homem, apesar do seu tipo franzino e pequeno, cuja obra e serviços prestados a Viana se perpetuam até hoje.

Várias vezes, já adolescente, pude fazer trabalhos de equipe escolar do Colégio Bandeirantes, com os netos do casal Simone, filha de dona Judite e seu Vicente Castelo; e Marcos e Isabela, filhos de Dulcídio e dona Dôrinha, acompanhados dos meus primos paternos Ana Luisa e Luis Gomes, filhos do tio Lourival Gomes e dona Terezinha. Sentávamos naquela mesa grande, rodeada de janelas e quartos em sua lateral, que trazia, no canto direito próximo das janelas, um enorme pote e um filtro com água para beber, pois não havia geladeira. A mesma mesa que, por anos, reuniu toda a família e seus convidados, e deve ter ouvido, em tom baixo, o patriarca dizer “o sal está caro”, para os dias em que o tempero estivesse insosso, ou “o sal está barato”, para os dias em que a mão da cozinheira estivesse frouxa, agora servia a uma nova geração.

Dindinha Florita era uma pessoa encantadora, que sabia receber as pessoas em sua casa, com distinção e mimos. Doces, bolos, bombons e frutas faziam parte do seu cardápio para agradar os visitantes.  Era ela mesma quem fabricava tudo. Os deliciosos doces de compota de casca de laranja ou de goiaba, tudo retirado do vasto e bem cuidado quintal, com suas goiabeiras, mangueiras, laranjeiras, hortaliças e plantas ornamentais. Outros sobrinhos que puderam conviver por mais tempo com ela dizem que, quando não tinha nada que pudesse agradar uma criança, oferecia uma pedrinha de açúcar. Alta, esbelta e de uma simpatia contagiante, quando faleceu, senti o peso do luto, ainda que muito pequeno, sem me dar conta de que a vida é uma eterna despedida.

O Sobrado era o ponto de encontro de toda a família. Minha mãe morava na Ilha de Santa Bárbara, próximo da cidade de Cajarí, com seus pais e irmãos. Passava uma parte das férias em Viana e outra em São Luís e, muitas vezes, ficou hospedada no Sobrado. Contava das festas, dos doces e bebidas, das roupas de festa, dos namoros, do gramofone, dos livros e das conversas em tom baixo de Tio Ozimo e da vida no Sobrado. Uma vida de respeito, de religiosidade, de paz, de acolhida e de fraternidade.

Entre a sala e a mesa grande do Sobrado, tinha uma porta que levava para a área de serviço da parte de cima da casa. Ainda no corredor, havia uma pia de lavar as mãos e um cômodo que parecia um quarto de despensa de guardar mantimentos e onde as roupas eram engomadas. Em seguida, tinha a cozinha, com piso de tijolos e cimento, com um fogão a lenha, com quatro bocas, um forno, o lavatório/pia e os tachos e panelas para o preparo da comida. Fora da cozinha, um banheiro social e a escada que ligava com a parte de baixo do sobrado, onde guardavam carvão, lenha e outras tantas coisas da época.

Ao subir a escada de entrada do Sobrado, toda de madeira, com seu largo corrimão, seguindo dois ou três passos, entrava-se na sala grande. Se contornasse a escada pelo lado esquerdo, seguia-se para a sala grande de visitas e de festas, toda rodeada de janelas e onde havia uma sacada, que dava para a rua Raimundo Lopes. Nesse ambiente, eram realizadas as festas e as visitas de cerimônia eram recebidas.

Nessa mesma sala, o casal celebrou suas Bodas de Ouro e foi feito o velório do corpo de tio Ozimo. A decoração da sala, com móveis de madeira preta, cobertos por panos de renda e bibelôs de louças seguia o mesmo padrão da mobília da casa. O teto era forrado com madeiras vindas de Portugal, num tom branco azul e celeste.  Nesse local, também, foi festejado o aniversário de quinze anos de Simone.

Na parte de baixo do Sobrado, ficavam os cinco salões que compunham a Farmácia. No primeiro salão, com portas para as duas ruas e mais uma que se ligava ao corredor de entrada da Casa, ficava a Farmácia, a área comercial, com um balcão de madeira e vidros que separavam os clientes do dono. Na parte interna, enormes armários de madeira e portas de vidro, cheios de remédios. No centro, um móvel grande, que abrigava a caixa registradora e outras tantas coisas. Um cofre de puro aço, que servia para guardar os pertences valiosos do Sobrado, juntava-se aos móveis da Farmácia. Nos outros salões dos fundos, ficava o laboratório, onde o Dr. Ozimo fazia as receitas e fabricava a saúde do povo vianense, além do armazenamento de medicamentos que chegavam de São Luís. Tio Ozimo, enquanto pôde, fez a sua caminhada pelos campos de Viana, ao mesmo tempo em que aproveitava para estudar a fauna e flora da cidade. Ao retornar de seu passeio matinal, recolhia a sacola de pão, presa no corrimão da escada, que, a essa altura, o padeiro já havia deixado, com pães quentinhos do dia.

Tio Zezico, irmão da minha mãe, trabalhou desde os catorze anos na Farmácia e contava que a Farmácia ficava aberta de domingo a domingo, sempre fechando às vinte horas e somente no dia primeiro do ano não abria. Em sua porta, ao cair da tarde e início da noite, juntavam-se os homens para uma breve conversa. Era nesse canto que se fazia a maior batalha de queima de boi da história de Viana, muito apreciada pela família de meu pai, o senhor Joaquim Gomes. O renomado médico Dr. Aquiles Lisboa assistiu a uma dessas batalhas do alto do Sobrado e não resistiu. Vendo a casa toda forrada com cortinas e toalhas para evitar a entrada de fumaça, enquanto lá embaixo, os homens jogavam fogo no lombo do boi, ao toque dos tambores e da gritaria dos brincantes e acompanhantes, disse ao Seu Ozimo, “que aquilo não era coisa de gente, era coisa de loucos, de animais”.

É por tudo isso que penso que os sobrados são espaços de histórias. Espaços de um tempo. Um espaço antropológico, como afirma Merleau-Ponty, um lugar existencial. Se não está de pé, se esvai com o tempo e vira pó. Reerguido, reconstruído, será a volta de um tempo. Como o tempo que foi costurado pelo casal Florita e Ozimo Carvalho e que não é só mais dele.

 Joaquim de Oliveira Gomes ( Acadêmico AVL)

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